Personagens de limpeza: publicidade e criança
“O comercial apresenta um mundo lúdico, sem perigos, de fácil manuseio, onde tudo se resolve num passe de magia e sem grande esforço”, Carla Rabelo
Por Marcus Tavares
Eles são imbatíveis e verdadeiros heróis. Não têm o mesmo sucesso do Batman ou do Super-homem, mas ganham lugar de destaque no dia a dia de muitas casas. Quem são eles? Os personagens dos produtos de limpeza. Talvez você nem tenha notado, mas eles estão presentes nos rótulos, embalagens e comerciais, prometendo eliminar de vez as bactérias, ratos, baratas, moscas e mosquitos.
Os personagens fazem a cabeça de muitas donas de casa e, como era de se esperar, das crianças. “Os roteiros criados para a publicidade televisiva, por exemplo, oferecem histórias de ficção baseadas na realidade que vão de combates entre um herói e um inimigo perigoso, como o Pato Purific, encarnado a cada trama num super-herói distinto, lutando contra as bactérias do vaso sanitário, ou personagens humanizados realizando tarefas de limpar a casa num tom de magia. Este tipo de linguagem é familiar à criança e ao seu universo, já que ela cresce estimulada por estes signos”, explica Carla Rabelo, mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo.
Integrante da Rede de Trabalho do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana e assistente da diretoria geral do Centro Cultural São Paulo, Carla sabe do que está falando. O assunto foi tema de sua dissertação de mestrado: Perto do alcance das crianças - o papel dos personagens em propagandas de produtos de limpeza, sobre regulação e publicidade . O estudo faz uma cuidadosa relação entre as propagandas, as crianças e suas respectivas mães.
Confira a dissertação na íntegra
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-20052009-113949/
A pesquisa é bastante pertinente. De acordo com o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), os acidentes com produtos de limpeza oscilam entre o segundo e o terceiro lugar no ranking de intoxicações em crianças com idade abaixo dos cinco anos.
Confira a entrevista que Carla Rabelo concedeu à revistapontocom:
revistapontocom - Qual é o papel dos personagens nas propagandas de produto de limpeza?
Carla Rabelo - Há muito tempo que a publicidade deixou de comunicar a função do produto para falar de sensações e prazeres além do objeto. O filósofo Gilles Lipovetsky fala desta função da publicidade quando diz que ela poetiza o produto, a marca e idealiza o trivial da mercadoria. Os personagens geralmente são utilizados pela publicidade para tentar obter uma conexão afetiva com o receptor, são porta-vozes e corporificam a marca. Além de estarem presentes em publicidade de produtos alimentícios, brinquedos, estão também em outros tipos de anúncios, como os de produtos de limpeza. Há utilização do lúdico para falar sobre bactérias, ratos, baratas, moscas, mosquitos, sujeira etc, como tentativa de suavizar a comunicação evitando apresentar estes elementos reais considerados “asquerosos”. Eles assumem também o papel de heróis animados quando combatem estes “inimigos” do lar e do bem-estar. Há ainda as seguintes hipóteses sobre o uso do personagem animado: utilizado como linguagem que remete o adulto à proteção do lar, da família e ao cuidado com o(s) filho(s); utilizado como recurso indireto para a criança influenciar a compra do produto pelo adulto; e fidelização da criança para seu futuro como consumidora.
revistapontocom - Então podemos dizer que (até mesmo) as propagandas de produtos de limpeza são voltadas para as crianças?
Carla Rabelo - Indiretamente sim, já que, ao apresentarem personagens e animação, as propagandas chamam atenção das crianças além da atenção do adulto consumidor do produto. Os roteiros criados para a publicidade televisiva, por exemplo, oferecem histórias de ficção baseadas na realidade que vão de combates entre um herói e um inimigo perigoso, como o Pato Purific, encarnado a cada trama num super-herói distinto, lutando contra as bactérias do vaso sanitário, ou personagens humanizados realizando tarefas de limpar a casa num tom de magia. Este tipo de linguagem é familiar à criança e ao seu universo, já que ela cresce estimulada por estes signos. Vale adicionar e ressaltar que a criança é considerada a soberana do lar e sua participação nas decisões da casa tem sido crescente. O problema não está limitado somente à propaganda, mas a uma questão social na qual os pais, para aumentar a renda familiar, têm que dispor de um tempo cada vez maior longe de seus filhos e para compensar esta ausência cedem aos desejos e pedidos diversos. O consumo, permeado por incentivos políticos e empresariais, pode se tornar a moeda de troca, a redenção. Além disso, a indústria cultural e de consumo faz da criança uma peça influenciadora de seus pais mesmo em relação a produtos não destinados a ela, como automóveis (ex: comercial da Nissan com a banda Pequeno Cidadão), bancos (ex: Poupançudos, da Caixa Econômica Federal), entre outros. No passado, o cigarro foi utilizado para atrair o público infanto-juvenil por meio do personagem Joe Camel. O recurso está presente em várias classes de produtos, basta observar nos meios de comunicação.
revistapontocom - Portanto podemos dizer que as crianças determinam, muitas vezes, o produto de limpeza que a mãe compra no supermercado?
Carla Rabelo - Não necessariamente, mas as crianças podem influenciar a compra ao reconhecer o personagem e fazer menção a ele, seja no supermercado ou em outro espaço. Outra forma de influência indireta é a lembrança da criança pela mãe ao escolher determinada marca pela forma como ela se comunica. Um produto repleto de elementos lúdicos pode remeter a mãe aos cuidados com seu filho.
revistapontocom - As mães têm noção desta estratégia?
Carla Rabelo - Existe um fluxo mais amplo que precisa ser apresentado. Em minha dissertação de mestrado Perto do alcance das crianças - O papel dos personagens em propagandas de produtos de limpeza, sobre regulação e publicidade, entrevistei onze mães para tentar verificar algumas hipóteses relacionadas à publicidade de produtos de limpeza e a comunicação de risco. Em geral, elas não fazem ligação entre o uso dos personagens e a possível atração aos seus filhos, e não associam a advertência da embalagem Mantenha fora do alcance das crianças e sua ausência na publicidade audiovisual. Algumas mães, não todas, reconheceram o uso dos personagens e até criticaram, mas a problematização não aprofunda questões de um fluxo que vai da regulação até a prevenção em domicílio. E as mães que nem perceberam a estratégia são mais vulneráveis.
revistapontocom - Os comerciais lúdicos acabam “disfarçando” o perigo que os produtos trazem e com isso não há uma grande preocupação com seu armazenamento?
Carla Rabelo - É possível, pois não há uma regulação efetiva à publicidade de produtos de limpeza, que são produtos tóxicos e se comunicam semelhante aos comerciais de brinquedos. Até mesmo site para crianças se divertirem foram criados, como é o caso da marca Minuano que, além de criar os personagens Minus, criou uma página na internet destinada às crianças. Existe apenas regulação para a embalagem, para o produto. Diante dessa cena permissível, as criações publicitárias ganham dimensões diversas. O comercial apresenta um mundo lúdico, sem perigos, de fácil manuseio, onde tudo se resolve num passe de magia e sem grande esforço, assim o próprio produto já não se configura como ele de fato é, um produto tóxico. Ele se transforma numa poção mágica. Esta configuração pode fazer com que ele ganhe outro caráter de classificação em seu armazenamento, como um produto sem perigos. A percepção de risco é redimensionada, reduzida.
revistapontocom - É grande o número de crianças que acaba sofrendo problemas devido ao manuseio/ingestão destes produtos?
Carla Rabelo - Sim. Os acidentes com produtos de limpeza (saneantes domissanitários) oscilam entre segundo e terceiro lugar no ranking de intoxicações em crianças com idade abaixo dos cinco anos, conforme dados verificados no Sinitox (Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas). Perde apenas para os medicamentos, outra grande fonte de intoxicação infantil. Os acidentes ocorrem pelo fácil acesso aos produtos que são deixados ao alcance das crianças. Elas são atraídas pela cor, desenhos, formato da embalagem, pela curiosidade ou por tentar imitar os pais. Na prática, o que acontece é a baixa percepção de risco da criança somada aos seus referenciais no adulto que fazem com que ela o imite lavando roupa, limpando a casa etc. Uma situação de autorização ao contato com produtos de limpeza. O perfume, as cores dos produtos ou mesmo o reconhecimento na embalagem do personagem que ela viu na propaganda podem fazer a criança interpretar o produto como sendo um objeto para ela brincar ou ingerir. E dependendo da idade da criança, a disponibilidade para experimentações é maior. Além disso, o uso de produtos clandestinos acondicionados em embalagens de refrigerantes confundem a criança. Muitos adultos não percebem esta relação, eles se sentem no controle da situação.
revistapontocom - O que dizem os órgãos envolvidos com o tema?
Carla Rabelo - Na pesquisa, entrevistei responsáveis pelos principais órgãos de controle e prevenção às intoxicações, como Centro de Controle de Intoxicações (CCI/SP) e Centro de Assistência Toxicológica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Ceatox/SP). Ambos reforçam a dificuldade em lidar com o controle, já que a divulgação (comunicação de risco) carece de maior eficácia e a coleta de dados para mensuração das estatísticas anuais precisa de melhorias. Em outra vertente, a regulação publicitária no Brasil é executada no âmbito público pelo CDC (Código de Defesa do Consumidor) e pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e no âmbito privado pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), sendo os dois primeiros de caráter legislativo e o último em caráter autorregulatório. Em visita a Anvisa, em Brasília, pude perceber a preocupação da instituição em suas investidas para regular a publicidade por meio das medidas em comunicação de risco e pela GPROP (Gerência de Monitoramento e Fiscalização de Propaganda, de Publicidade, de Promoção e de Informação de Produtos sujeitos à Vigilância Sanitária). Embora tenha um profissional específico para o controle das propagandas de medicamentos, de produtos de limpeza, entre outros produtos, ainda não tem medidas efetivas no âmbito dos saneantes. O órgão regula efetivamente os produtos e suas embalagens com leis que delimitam precauções sobre uso e manuseio, como é o caso da advertência vigente em produtos de limpeza (Conserve fora do alcance das crianças e dos animais). O CDC enfatiza a proteção à saúde e segurança dos cidadãos em relação a produtos perigosos ou nocivos, e reforça a educação e divulgação em relação ao modo de usar dos produtos, evitando a indução a um comportamento perigoso. O Conar é um órgão criado e gerido por profissionais da área de comunicação, e especificamente da publicidade. Consegue manter normas da classe para que sejam seguidas, mas como não é lei, não consegue ter uma força efetiva, e algumas decisões ficam a desejar. Sobre produtos de limpeza não há normas específicas. As normas existentes apresentam definições passíveis de diversas interpretações, mas na dissertação fiz associações com outras categorias como de bebidas alcoólicas e de produtos tóxicos onde puder constatar a menção aos cuidados relativos à criação e à comunicação publicitária, tanto para a prevenção de acidentes, quanto para os cuidados com as crianças. Por outro lado, algumas organizações não-governamentais como o Instituto Alana e a Criança Segura desenvolvem medidas preventivas e de conscientização da população em relação à comunicação publicitária. A atuação do poder público tanto pela exigência das empresas em fazer valer sua responsabilidade perante à sociedade, quanto em apresentar os perigos dos produtos em sua comunicação (publicidade, jornalismo, relações públicas, cinema, etc), deve ser efetiva para mitigar os riscos aos quais estamos expostos. Em resumo, para que isso se concretize, o somatório de responsabilidades (civil, jurídico e estatal) e a discussão sobre as nuances da comunicação de risco devem ganhar atenção, principalmente para o benefício social e diminuição dos acidentes.
Texto originalmente publicado e comentado no site da RevistaPontoCom.
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